quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Relato de uma quase vida - Concurso de Redação

Relato de uma quase vida
      Ando falando muito comigo mesma ultimamente; não há com quem falar. Mas não faz mal, me contento com minha própria companhia, ela me entende como ninguém. Acontece, que ando me sentindo muito só. Não que eu não goste, mas sabe como é, falar sozinha às vezes cansa. Por isso resolvi contar minha história pra vocês. Não exijo que me compreendam, - afinal ninguém nunca consegue - mas peço que me acompanhem até o final.
      De acordo com os registros, nasci homem. É, simples assim. Viram meu órgão sexual e determinaram: é um menino! Definiram, através de características genéticas, o que eu deveria ser e do que gostar pro resto da vida. Mas cometeram um engano: eu já nascera mulher; na alma, nos sentimentos. Pena que esses itens não sejam considerados nos registros. Até a mim conseguiram enganar. Por um bom tempo, também achei que fosse homem. Todos diziam isso, oras, por que deveria duvidar? Mas eu sentia que alguma coisa estava errada. Errada? Sim, estava. Mas não era comigo, e sim com eles que preferiam (e preferem) acreditar em suas próprias concepções do que nos fatos.
      Para mim, nasci mulher aos onze anos de idade. Para minha família, aos dezoito e para o mundo, aos vinte. Fui expulsa de casa assim que resolvi contar a verdade. Já esperava que isso acontecesse, naquela época ainda era novidade e eu acreditava fielmente que com o tempo a conformidade viria. Mas não veio.
      Aonde quer que eu fosse, chamava atenção. As pessoas tinham repulsa de me olhar. Eu quase podia ver em seus olhos tudo o que se passava em suas mentes preconceituosas, tudo o que elas imaginavam que eu fizesse, que eu dissesse. E isso, afirmo com toda certeza: O que pensavam sobre mim era muito pior do que realmente se passava comigo. Na verdade, todo o nojo que sentiam, era por motivos que somente existiam em sua própria imaginação. Por isso eram tão tolas, não procuravam saber mais sobre meus motivos, meus gostos e meus sofrimentos. Me julgavam porque não conseguiam imaginar uma vida diferente da que tinham. Mas nada me abalava, eu sabia que era superior à elas, eu não julgava ninguém. Só agora, muito tempo depois, consigo ver que não era superior coisa nenhuma, na verdade era até pior, pois elas nunca tinham sofrido preconceito e não entendiam o quanto doía. Mas eu já havia sofrido muito e ainda assim era preconceituosa, pois, pra mim, qualquer um que me olhasse, já estava pensando coisas absurdas. E não é bem assim, não se pode generalizar.
      Com total falta de apoio e contato, tive que me virar sozinha. O único lugar onde consegui emprego foi num circo, pois não queriam empregar "gente como eu" em "empresas de respeito", e eu não fazia a mínima questão de esconder minha sexualidade para conseguir um trabalho. Não me envergonhava - apesar de todas as rejeições - porque não havia nada com que me envergonhar, não é mesmo? Todo mundo faz escolhas na vida, e eu havia feito a minha. Mas tive de arcar com todas as consequências que a acompanhavam. Uma escolha que tinha, de início, o objetivo de me fazer feliz, se transformou no motivo de minha maior tristeza. Me fez ter uma vida amarga. Uma quase vida.
      Não fosse trágico, seria engraçado observar essa mudança: Por onde eu passava, não mantinham contato visual por muito tempo; homens estabeleciam distância, mães zelosas e preocupadas com a integridade dos filhos tapavam seus olhos e oravam para que nunca fossem como eu. Queriam me esconder do mundo, da vida em sociedade. No circo, colocavam-me em exposição; exibiam-me como se eu fosse um bicho exótico em extinção. Mal sabiam que esses "bichos" estavam muito longe de se extinguir. De início, odiava as pessoas que frequentavam o local, que iam para ver animais fazendo coisas que não nasceram para fazer, pessoas se vestindo com todas as cores do arco-íris para fazer piadas sobre outras pessoas e para me ver, o "Homem que quer ser mulher" , conforme anunciava o panfleto. Mas percebi que novamente estava julgando sem conhecer. Aquelas pessoas podiam ter muitos problemas, ter uma vida difícil, um trabalho mal pago, e, ao invés de buscar melhorias, descontavam suas frustrações em nós. Podia ser confortável saber que, por mais ruim que fosse sua situação, existe gente que passa por coisa pior (no caso, eu).
      Meu papel era simples: Entrar no picadeiro com vestido, maquiagem e peruca, dizer "Oh, Deus, me transforme em mulher, por favor!" com minha voz grossa demonstrando que eu era mesmo um homem por baixo daquele "disfarce", e sair, ouvindo risos e ofensas pelas costas. Como é de se esperar, recebia muito pouco, quase insuficiente para me alimentar e me vestir. Meu patrão não tinha o mínimo respeito, mas isso não era exclusividade minha; desrespeitava a tudo e a todos. Alguns colegas de trabalho, e isso realmente me surpreendeu, me tratavam normalmente, conversavam e até diziam me entender. Foram as primeiras pessoas com quem pude conversar abertamente sobre minha sexualidade, o que foi um tremendo alívio para quem já estava a ponto de monologar com os elefantes. Mas amizade verdadeira mesmo, só tive com Sara, a acrobata. Ela era muito religiosa e me convenceu a ouvir um pouco sobre suas crenças. Juro, nunca tinha ouvido ninguém falar sobre Deus com tamanha admiração. Não era desses crentes que falam sobre todos os pecados que não podemos cometer, sobre coisas que temos que fazer para entrar no céu, nem sobre os castigos que recebemos por "mau-comportamento". Ela contava sobre o tamanho do amor desse ser misterioso por mim, me fez ver que Ele não impede que as coisas ruins aconteçam, pois não pode interferir no livre arbítrio, mas nos ajuda a superá-las. Me dizia também, que Deus vê o que temos no coração; nossos atos de generosidade e afeto para o próximo. Isto causou grande reviravolta em meus conceitos. Já me imaginava sem salvação, na verdade nem acreditava mais em paraíso. Hoje sei que posso sim ir para um lugar bem melhor, junto de gente que não discrimina raça, cor, religião, sexualidade, etc. Gente que vê meu coração. 
       Mas após alguns anos, Sara morreu, e voltei a ser solitária. Conversava muito com Deus, e, acho que foi por isso, vim parar aqui. Achavam que estava louca, falando sozinha com um ser imaginário. E agora estou aqui. Escrevo do hospício, onde espero o dia em que, finalmente, poderei descansar em paz. Quando terei uma vida completa. Pra sempre. 
Amanda de Oliveira - 2A

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