Espaço pedagógico para socialização, interação com alunos, professores, amigos sobre prática da leitura: poesia, contos, fábulas, crônicas, novas tecnologias, metodologia em sala de aula, libras, inovações no ensino, artesanato... Portanto, este blog é educacional, sem fins lucrativos, destina-se ao registro de atividades pedagógicas.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
DELÍRIO EM SETE FLASHS
Concurso de contos - FAFIMAN 2009
DELÍRIO EM SETE FLASHS.
(Bruna Siena)
I
Remexe na carteira. Suas costas doem. Malditos ossos que insistem em atravessar seu casaco. Trinta graus e ela ali, em uma tentativa vã de escondê-los, de protegê-los do resto do mundo. Não funciona, óbvio. Seu estomago também dói. Gastrite. Nervosismo, é isso. Talvez seja sua culpa. Ela estava muito bem - mal - antes de te conhecer. Ela tinha amigos. Ela tinha sorrisos e não lágrimas. Ela tinha uma vida. Mas ela era tão vazia. Parou de comer graças á você. Talvez, se fosse magra, ninguém a veria. Ela não ouviria ninguém. Estaria imune a tapas e pontapés. Aos xingamentos e ao desprezo. Só que algo deu errado no caminho. Sua cabeça, que sempre trabalhou de uma forma meio estranha, agora parece pior, bem dada à autodestruição, e por mais que ela tente, não consegue convencê-la de que isso é errado e que vai acabar a matando. Acontece que é fácil demais gostar de algo que a fazia sentir-se melhor do que quando ela era apenas uma garota de verdade. Não funcionou. Tarde demais.
O sinal toca e acabou. Todos saem, mas ela continua ali, estática, imóvel. Te esperando. Correm e gritam, riem e choram, sentindo e vivendo em níveis totalmente diferentes ao dela... Mas nunca foi normal, foi?
Alguma mão gelada, toca seu pescoço e ela treme. Não quer fazer isso. Não quer esconder. Ela simplesmente quer te olhar nos olhos. Quer te abraçar, quer ser só sua. Se afasta e abaixa a cabeça. Importar menos. Ligar menos. Ergue seus olhos úmidos para ele e quase ecoa a pergunta que ressoa em sua mente
– E isso fará alguma diferença agora?
Já é tarde. Nada vai mudar. Ela continua vazia, em todos os sentidos.
Ele tinha olhos azuis e cabelos loiros, era um pouco caricatural e incrivelmente bonito. Seria fácil demais se perder na fala meio amortecida e nas palavras divertidas, saltando como uma armadilha para dentro de você. O problema é que ele sabia o poder que exercia, sem mesmo querer. Ele sorria e beijava seu pescoço como se fosse a coisa certa a fazer, segurando sua cintura e a deixando incomodada por saber que ele não iria sentir ossos sob os dedos, e isso é ruim. Muito ruim. Mas ela nunca se importou de verdade, então apenas suspira e sente o perfume masculino que agora está na sua pele também, aquilo já havia acontecido á muito tempo atrás, agora ela era apenas uma garota querendo relembrar seu passado infame enquanto vira mais uma dose, só mais uma.
Desaparecimentos acontecem, dores viram ilusão, o sangue pára de correr e as pessoas... as pessoas vão sumindo. Há mais o que dizer, muito mais. Mas ela estava desaparecendo. Ela simplesmente não havia mais nada, apenas suas noites regadas à cigarros e sexo. Ela simplesmente não queria mudar isso, queria morrer e adquirir sua viagem ao inferno, pois acreditava que lá era o melhor lugar para pessoas que se matavam cada dia mais, matavam sua alma, matavam seu corpo, matavam seu coração. Às vezes, um simples ronco na barriga para ela, era uma vitória. Mais um dia, só mais um dia sem comer, só mais um dia sem viver, sem crer, sem amar.
Nicolle, era seu nome, uma garota que com seus poucos e mau vividos 17 anos, já havia sido enternada por 4 vezes. E cada uma dessas vezes, Nic - como preferia ser chamada - vivera novamente, médicos tentavam reanimá-la mais ela morrera por apenas 15 segundos. Ela diz que não viu nada, apenas escutava seu estômago dizendo que ela havia finalmente conseguido. Ela queria ter morrido naquela noite, aquela noite que fora a mais turbulenta, a mais chuvosa.
Quem eram seus pais? Não importa, pra ela nunca importou, eles a expulsaram de casa aos 16 anos e seu pai lhe pagava um apartamento, classe média. Não mantinham mais contato a não ser por emails, apesar de que pra ela não fazia diferença. Aliás, nada importava para ela. Era ela, ela e ela. Seu egocentrismo não a deixava pensar nos outros. Ela tinha meia dúzia de colegas, eram poucos... mais eram verdadeiros, pelo menos era o que ela preferia acreditar, pois eles eram seu alicerce. Ela caia, eles a ajudavam. Ela chorava, eles enxugavam suas lágrimas. Ela se cortava, eles não viam. Nicolle, sempre foi adepta à automutilação, acreditara que cortando-se ela sentiria a dor de formas diferentes, esqueceria que aquilo sujo, promiscuo, drogado era simplesmente o seu corpo, ela queria acreditar que aquela dor faria ela esquecer do que ela se tornou. Apesar que para ela, ela não era nada. Era apenas um peso morto no mundo e para tudo que nele habita.
II
Será que existiam principes encantados nesse mundo, ou então aqueles principes de contos de fadas que chegam em seu cavalo branco para resgatar a princesa? Nicolle, não acreditava em amores verdadeiros, pra falar a verdade ela não acreditava nem no amor. Pra ela o amor era o princípio do ódio e ele era o causador das desgraças que estavam acontecendo em todos os lugares. Era uma mentira, eram apenas sólidas amizades.
Davi, essa era sua revolta. Ele era apenas mais um dos causadores de sua tristeza, ele conseguira transformar Nic em uma nuvem. Ela ficava tão leve quando pensava nele, que parecia uma nuvem, pronta pra despejar suas gotas de água, ou seria o ínicio de uma tempestade? Não se sabia muito bem.
Dentre as milhares de festa que já havia frequentado, talvez esta fosse a única forma que ela tinha de se esquecer da vida. Ela estava sóbria. A luz da fogueira ofuscava sobre seus olhos, ela via pessoas estranhas saindo de todos os cantos e se sentando em volta dela. Alguns conversavam, outros riam. Tiravam suas bolsas das costas jogando-as em qualquer lugar e aos poucos iam retirando os conteúdos suspeitos que por ora as ocupavam, aquela seria apenas mais uma em que ela beijara todos os garotos e garotas que estavam lá, tomava todos os drinks e utilizava vários tipos de drogas.
– Eu tô livre, bêbada, livre. - dizia ao vento, já não via mais nada, apenas flashes de luzes fluorescentes, pareciam estrelas ou meteoros em uma galáxia qualquer.
Quem estaria produzindo essa maldita luz? Seus olhos doeram e ela viu de relance alguém se aproximar, com uma garrafa em mãos, contendo algo que a agradaria ou pelo menos ma satisfaria por ora. Seu rosto não era visível, e também não era realmente importante.
– O que você tem?
O líquido âmbar já descera pela sua garganta, uma, duas, três vezes. Ela já não sabia o seu estado, e não queria imaginá-lo. Só o que sabia, naquela réstia de lucidez, era que tinha perdido suas calças e só usava uma camiseta um pouco grande demais para o seu corpo.
– Mas que maldição! Quem está aqui, agora? Sou só eu que sinto o frio? Eu quero ir para casa. - ela se perguntava, mais só em pensamentos, pois ela não tinha mais controle sobre sua boca, as palavras apenas ressoavam em sua mente.
Já tinha se perdido no meio de tanta bagunça, não sabia mais o que estava usando, experimentou coisas que nem sequer sabia que existiam. Já estava fora de si, a única coisa pior do que não voltar seria voltar. E ela ouviu a sua risada. Ela ouviu alguém entrando na água, e ouviu alguém a chamando para entrar também. Ela ouviu alguém caminhar até perto de si e sussurrar em seu ouvido:
– Coma alguma coisa, você está ficando pálida. Vai ter um treco se continuar usando drogas assim, de estomago vazio.
Ela só ouviu, porque não agüentava mais abrir os olhos.
– Você realmente não se importaria. - Ela disse. Mas as palavras nunca chegaram a realmente deixar a sua boca.
Ela havia caído. Ainda não podia ver, também não podia sentir, e estava começando a perder os sentidos. Ela havia caído, era tudo o que sabia. Porque o baque surdo do seu corpo ameaçado contra o chão chamara a atenção de alguém. Estava tudo errado. Ela sentiu o seu estomago se revirar, e a luz das chamas parecia tão mais distante agora. Seus olhos se abriram, e ela pode ver as silhuetas dos outros, tão perdidos quanto ela estava, ou talvez mais. Talvez conscientes, mas a maioria deles não. Eles simulavam diversão, enquanto ela sentia dor.
Seu coração acelerado. Ele estava frente ao seu rosto, olhando no fundo dos seus olhos inexpressivos, sentindo o seu pulso. Nicolle não conseguiu dizer nada. Talvez fosse a súbita turbulência do amor que sentiu por ele. Ou será que sempre o tinha amado? Era provável. Impedida como estava de falar, desejou que ele a beijasse. Quis que ele arrastasse sua mão e a puxasse para si. Não importava onde a beijasse. Na boca, no pescoço, na face. Sua pele estava vazia para o beijo, esperando. Martirizando-se de uma maneira que só ele podia. Tocou as suas pernas geladas, e então pode sentir o calor de sua mão. Ela soube então a origem de toda a luz, ele puxou a máquina de seu pescoço apontando-a para o seu rosto pálido. Mais um último flash. Era Davi, ela fitava apenas seus olhos azuis, aqueles fios loiros esvoaçantes, parecia cena de algum filme qualquer. Ele a colocou dentro de um taxi, ela simplesmente não sabia onde estava, quem era e nem porque estava ali.
Na sua cabeça, todo mundo pensava algo errado sobre ela. Ela errava, e errava muito. Na verdade, não queria esperar que conseguiria, as pessoas esperam, alma de sorte. Queria pensar que aquele havia sido seu último gole. E foi doce. Um gole doce que a trouxe um gosto amargo, ela queria pensar que havia largado tudo e que aquele fora seu último cigarro. A última noite, o último tiro na cabeça. Ela, bêbada no taxi, foi ruim. Músicas malditas ficam na cabeça, sempre ficam. Ela corria da dor e a dor corria atrás dela, tinha medo do que ela havia se tornado em tão pouco tempo. A dor corre em forma de música, ela te faz vibrar e chorar, existe um ódio recorrente, tortura mental, coração que sangra. Quanto tempo durava? Se desligar de algo leva tempo. Olha a hora, ela devia estar sorrindo com gosto de maconha na boca. Não estava, não estava. Todo mundo fala da própria vida, que vida? Vida é o quê? Voltar em zigue zague pra casa a fazia feliz? Olhar para Davi e saber que pra ele, ela era simplesmente uma drogada prostituída das noites? Seu eu era sistemático, ácido, bipolar. Na verdade, não existem muitos adjetivos complacentes. Ela era essa farsa que todo mundo lê, esses erros de português, drogas nas veias e uma neura cerebral, essa merda toda. Se desfez em segundos, se refugia na sombra do protótipo do seu ser, ela não conseguia se lembrar da noite passada sentia apenas pontadas na cabeça, e o gosto de vômito na boca permanecia.
A dor não era escassa. Era fria e a dilacerava. Ela tinha e ainda tem sentimentos. Inerte, apática. Era manhã, ela viu seu orgulho indo por água abaixo num asqueroso jato de vômito, a bulimia era parte dela também, era sua amiga, segundo ela. Foi para o colégio na esperança de encontrar Davi, sua vontade era de dizer tudo, queria que sua alma saisse pela boca e ela ficasse estatelada ao chão, morta em seu tapete feito uma atropelada, nua, absolutamente visível, transparente... queria dizer tudo que podia para ele, ela tinha de dar a sua alma. A manhã fora longa, a ansiedade era tanta que Nic não conseguira prestar atenção em nem sequer uma palavra que havia sido dita naquela manhã. Andando despercebida pelo corredor, quando um solavanco a pegou desprevenida, seus livros cairam e sua mente escureceu. Recuperou a visão e viu que aquele homem, ali parado em sua frente era Davi. Seus olhos estavam mais azuis do que nunca e havia um certo tom de seriedade em sua expressão.
– Nicolle... - disse ele, tentando desviar seus olhos dos olhos de Nic.
– Olá Davi, obrigado por... - foi interrompida.
– Não fiz mais nada do que minha obrigação, você estava desacordada, jogada ao chão e eu me vi no direito de ajudá-la. - seu tom de voz transmitia inquietação.
– Depois de tudo... você fez muito por mim. Nós não conversamos mais depois daqueles episódios.
– Eu não quero falar sobre isso Nicolle, eu não te perdoarei. Você se tornou aquilo que eu mais temia, você não comia, você não amava, você não vivia. Era triste te ver daquele jeito, cada dia pior, cada dia mais drogada e inconsciente.
– Eu sempre te amei Davi, me diz... olhe em meus olhos e diz que não me ama mais.
– Eu deixei de te amar pois você não me emocionava mais. - sua expressão fora tão convincente, virou as costas e saiu andando.
O mundo de nicolle havia caído naquele instante, suas palavras não saiam mais de sua boca, suas pernas não saiam do lugar, ela havia matado todos os sentimentos bons que ainda existiam dentro dela. Aquilo tinha servido como uma estaca, ela estava machucada. Saiu correndo, não via nada, não ouvia mais nada. A voz autêntica, a voz cálida e embaladora de Davi, havia a ensurdecido, soou como uma bomba, ela era mais sensível do que aparentava ser. Seu maço de cigarro estava intacto, pois ela prometera que seria seu último cigarro. Não cumpriu, quando se deu conta de que já havia fumado meio maço. Dentre garrafas de refrigerantes intercaladas com vodka, ela já estava fora de si novamente. Caída em um lugar qualquer, como sempre.
Acordou em meio á praça principal da cidade com uma garrafa de destilado nas mãos e um maço de cigarro vazio ao lado. Algumas gotas cairam em seus olhos, logo ela se via em meio á uma tempestade, não fez esforço para se retirar dali, ficou ali sentada, reparando nas poucas pessoas que passavam na calçada com seus guarda-chuvas e suas galochas. Ela, ali encharcada, ao lado de um banco. Aliás fazia tempo que não conversava com ninguém, desabafou-se com o banco, ele não a respondia, mais ela em seu estado nada lúcido pensara que ele estaria ouvindo a história - ou quase - da sua vida quase maldita.
– O senhor... - fazia uma pausa para respirar -, o senhor é feliz?
– Será que eu poderia chamar essa droga de vida, de vida? Eu não vivo, eu apenas existo. Estou morrendo. Sim, desta vez é sério. - dava uma golada na garrafa quase vazia.
– Já se sentiu assim, senhor? Sou um pedaço de algo verde arrancado de sua terra natal. Estou no meio de um infértil deserto de sorrisos falsos. Eu grito até a minha garganta machucada se romper, mas mesmo que eu sangre e gire, nunca ninguém irá me ouvir. Como sempre foi assim, depois de um tempo você não sente mais. Me responda senhor! Me responda! - já estaria aos prantos, se não fosse pela chuva que caíra em seu rosto e se misturava a suas lágrimas sinceras.
– Devo ter cruzado a avenida toda em menos de dois passos, tempo suficiente para meu peito dilacerado queimar e arder. Não volto mais. Por que ele não me deixa ficar? Aconchegada a teu peito, não darei despesa alguma. Sabe que não como. Preciso apenas dele, senhor. Desisto do resto, quero apenas sua forma fria dentro de mim. Nada mais me importa, só Davi! - já havia recuperado sua lucidez.
– Eu sei, eu já pequei demais nessa vida, pecados são pecados, mas o que ele aparenta ser ou apenas descreve, nunca deixa de ser sufocadoramente urgente, desesperado, intenso. há uma ânsia, existe uma conexão e de repente sou eu lá, entre os cacos dele, sou eu, gritando por um nome que nunca antes pronunciei. devorou-me. Davi! Me compreendes, senhor?
– Acho que todos o entendem melhor do que a mim. Ele é quase que um quebra-cabeça. Não consigo decifrar nem mesmo seus olhares, ele é tão reservado. Porque ele é assim? Alguém me responde pelo amor de Deus, eu tenho que matar o que ainda existe em mim.
Levantou-se, saiu caminhando em direção ao seu apartamento. Molhada, suja, pós coma alcoólico, machucada, sem alma. Pra ela já não era novidade, seus dias passavam como se fossem anos, era sempre aquela solidão esperada. Ela não comia, ela não tinha mais família, ela não tinha mais um namorado, ela não tinha mais nada. Ela não queria aquilo pra sua vida, mais era necessário. Como ela se inspirava em seu mestre, Tom Jobim: O poeta só é grande se sofrer. Ela achava que depois de toda aquela turbulência, ela ainda veria flores em seu jardim.
III
– Então eu atravessei o espelho e entrei no mundo subterrâneo, onde para cima é para baixo e comida é pecado, onde espelhos convexos cobrem as paredes, onde morte é honra e carne é fraqueza. Aonde é muito fácil ir. Mais difícil é encontrar o caminho de volta. - dizia em voz alta, trechos de um livro de Marya Hornbacher. Apesar de ser uma garota totalmente desvirtuada, Nicolle tinha como ler um vício, uma das únicas coisas que gostava em si mesma. Lia mais de três livros por semana, era como se ela passase dessa dimensão à outra totalmente diferente, era um momento bom em seus dias. Além de ler, ela escrevera muito bem. Enquanto ela pudesse, enquanto ainda houvesse forças, ela fazia da escrita, a insígnia da sua salvação. E não só a dela, como a sua, que o lê. Ela sonhava em um dia poder escrever um livro apenas de crônicas e contos, não queria ser famosa, ela só gostava de escrever. Ela acreditava que escrevendo estaria desabafando com ela mesma, e assim aliviaria um pouco sua alma.
A cada capítulo que lia de sua vida, a certeza de que histórias nem sempre têm que ter um final feliz.
Um feixe de sol serpenteava na lanchonete quieta. Uma cena: Momentos de uma tarde preguiçosa, uma cachorrinha dormitando seu sono canino, e ela. O único barulho a interromper aquela calmaria deliciosa: o mastigar intenso. Mas afinal, o que tem de errado? Tudo - ela responderia com um sorriso falso, tão falso quanto essa suposta felicidade - ela estava comendo. E então, caro observador, venha, e olhe mais de perto. Se quiser, dê o mesmo salto que Nicolle se arriscou a fazer. Mergulhe no seu mundinho estranho, de dimensões bizarras e fatais. Ela riu. Cruel. Doente. Sádica. Masoquista. De perto, ninguém, ninguém mesmo é normal. Quando acabou, com a sensação conhecida e odiada de preenchimento, se levanta. Dá uma espiada na cadelinha. Ela ergue a cabeça. Seus olhos inexpressivos sabem. Ela talvez seja a única que sabe. Sorri pra ela. Sorri pra todos. Vai ao banheiro e vomita.
Sem rimas ou embelezamentos. Sem o glamour esperado. Sem as circunstancias fantásticas que você, caro observador, esperaria, vendo o jornal as oito horas de uma noite comum. Mais um morto, coitadinho. Infelizmente não correspondia as suas expectativas. Nicolle era apenas uma jovem feliz - não - numa tarde feliz - não - iluminada por um raio de sol e por pensamentos perigosos sobre vida, morte e paixão. Apenas mais uma das várias que escolheram a morte da moda - e o caminho louco e perverso até ela.
Era egoísta e hipócrita até o ultimo fio de cabelo, era bom que todos soubessem. Mais um dado para todos a desprezarem e odiarem. Mais um motivo para todos não lamentarem sua morte provável e próxima. Admirou o protótipo de saúde e de normalidade, como um cientista faminto observa seus ratinhos de laboratório. Faminta. Sua fome, seria de que? Era oca. De alimento talvez. Mas não só. Sem a possibilidade da paixão natural, escolheu a autodestruição. O êxtase infernal da inanição. A satisfação passageira e venenosa da compulsão, o nojo depois, a culpa e o sangue. Seus adoráveis hobbies mortais. E as mentiras, é claro. O teatro de sorrir, de falar, agir e fazer rir como se ela se importasse com alguma coisa senão a sua obsessão insalubre e sua capacidade de causar dor. Ela se importava - e muito - com Davi, mais ele a decepcionara. Havia um garoto sentado ao balcão de uma lanchonete qualquer, ela não costumava frequentar lanchonetes, talvez fosse porque tinha o hábito de nunca comer, olha para ele. Era um pequeno ser saudável, tímido, deveras humano. Incrivelmente errado alguém tão puro ser manchado por tamanha sujeira invisível, ela não deveria se apresentar à ele, pois ela o machucaria futuramente, talvez fosse a oportunidade de fazer um novo amigo, ou até mesmo um pretexto para esquecer Davi. Sujeira que era ela, fedendo a vômito, sexo e sangue, por debaixo de uma charmosa colônia feminina. Um leve odor de morte. Ele a olha, com certa preocupação. Tem olhos claros. Olhos doces. Porém, cabelos castanhos. Olhos claros devera ser o ponto fraco de Nic, mais de certa forma eles a lembravam do quanto Davi a odiava.
– Você não vai comer? - É sua acanhada pergunta. - Tome um pouco do sorvete, está muito bom.
Apoiando seu rosto mentiroso sobre um punho fechado, ela sorri.
– Posso me sentar?
– Não como podes, como deves! - ele sorri, seus dentes pareciam fontes de luz, brilhavam como o sol.
Ela estava encantada com ele.
– Como se chama garota?
– É, talvez eu devesse me chamar Nicolle. Mais geralmente as pessoas me chamam de dor. E você rapaz dos dentes brancos e dos olhos claros?
– Me chamo Cassio, prazer.
– Porque chamam a uma linda menina de dor? Deveras se chamar felicidade.
– Eu machuco as pessoas, deve ser por isso. - enregela a face.
– Você é linda! - ele cora.
– Quer sair daqui e ir andar pela cidade sem compromisso?
Cassio aceitou seu convite, pobre menino apaixonado por uma suicida lenta e metódica. Mas ela não era tão má assim, o que ela tinha de ruim, continha em sua alma. Mantinha as aparências limpas, as maneiras vulgares - mas sedutoras - da ilusão que o agrada. Iria arrastá-lo consigo - mas não até o inferno. Era só mais um de seus vícios. Seduzir, apaixonar. E, quando ele precisasse dela mais do que precisa do oxigênio para continuar respirando - ela o liberta, para o seu mais completo terror. Mais com ele parecia ser diferente, ele era diferente. Ele conseguira mexer com seus sentimentos. No fundo ela não sabia o porque fazia disso um de seus passatempos favoritos. Ainda existia a esperança de vida e promessa de felicidade nela. Talvez ela seja desmascarada. Talvez ela seja, algum dia, amada de verdade por um desses inúmeros meninos e meninas. Talvez, - só talvez - ela consiga amá-lo de volta.
E então, ela estaria salva. Mas, segundo as estatísticas de sua vida pecadora, a probabilidade de tal fenômeno é minúscula e desanimadora. Então, ela preferia seguir brincando, egoisticamente. Com ela. Com ele. Cruel demais para você, caro observador? Já sente vontade de saltar desse barco destinado ao reino de Hades, furado em cada centímetro, despido de qualquer salvação? Fique, olhe um pouco mais. É apenas o aquecimento. Perca um pouco de sua virgindade. Visite os abismos da loucura humana. Dance um pouco com Nicolle. Vai doer talvez, mas bem pouco. Você vai sair vivo. Ela não.
Se derrama sobre ele, horas depois daquela adorável cena com um sorvete, um demônio e algumas notas para a conta do motel. Murmura no ouvido dele:
– Apesar do tempo, acho que realmente gosto de você, o que pra mim é raro gostar de alguém. - ela nunca fora tão sincera.
Ele não a responde, sua respiração é tensa. Observa o movimento de sua própria mão sobre seu peito magro - não mais que o dela - descendo e tocando. Sua boca envolve a dele, que corresponde, sôfrego a um beijo profundo e rápido. Seus dedos finos caminham sobre os braços de Nic, e ele pede seus olhos. Sorri, tranquilizadora. O fios castanhos daqueles cabelos perfumados se espalham sobre o travesseiro. Espera por um momento. Ele a aceita, com uma segurança nascida da paixão. Se afunda entre seus abraços, com um leve gemido, naquele calor virginal. Derrama seus pecados dentro dele, o manchando de dentro para fora - simbólica e literalmente. Ele a abraça e incentiva. Ah, se soubesse da terrível verdade estaria chorando - apesar dela gostar realmente dele, ela era má, ela machucava as pessoas, o nome dela era dor - na verdade está, ela sintia suas lagrimas quentes e sua respiração acariciando seu pescoço. Mas são lágrimas doces e suas palavras as negam. Acaricia a pele violada, fazendo-o arquejar, amar e gostar. Começa a viciá-lo, o nome do vício era Nicolle. Seu corpo busca mais ao dela, e de sua garganta brotam os pedidos por mais. Aperta a pele tenra, fazendo-o sentir uma dor leve - o suficiente para que seja erótica - e os sons e movimentos implorantes e carentes que ele produz a levavam ao seu próprio ápice. De olhos fechados e ela ainda acomodando-se entre seus beijos e abraços, ele sussurra sua genuína declaração, em resposta à dela.
– Não me machuque senhorita dor, eu gosto de você, prometo não te machucar também.
Ela sentira um amor quase que instantâneo, Nicolle parecia estar apaixonada novamente. A partir daquele momento passara a esquecer Davi. Cassio a faria feliz? Ela não sabia se responder, mais se não tentasse não saberia a resposta. Ficaram deitados por horas e horas conversando assuntos aleatórios, já era manhã.
– Às vezes, gostaria que a mascara que eu uso fosse parte de minha tez. - ela disse à ele num tom calmo, porém triste.
Ela esperava as palavras fluírem, mascando o resto dilacerado de nicotina envolta em papel. Onde estava a inspiração que aquele corpo quente havia à perfumado com a noite anterior. Suspirou, seu estomago reclamando do excesso de acidez que não encontrava nada a ser destruído fora sua própria estrutura.
– Talvez não esteja conseguindo porque não come nada há dois dias, Nicolle.
Balançou a cabeça, em desacordo com sua natureza. É do sofrimento nascido e causado pela própria carne que surge o artista. Ou não. Ele se moveu docemente em seu sono, e ela virou-se para observar suas formas que remetiam a um infante. O sol causava sombras suaves nos lençóis que limitavam sua visão de seu torso despido. Talvez se ela observasse durante o tempo suficiente aquele ser imaculado conseguiria escrever o final feliz, se apaixonaria mais e mais por ele.
Nicolle, encaminhara-se para a casa de Cassio. Chegando lá, ele deitou-se na cama e acabou dormindo novamente. Ela sem sono, pegou uma caneta e um papel, queria escrever mais não achara as palavras certas. Empurrou seu papel para longe, irritada, e apagou seu derradeiro cigarro. Era realmente o ultimo, e isso era deveras preocupante. Numa casa habitada por seres humanos há comida. E no momento ela estava trancafiado numa, com seu dono dormindo tranquilamente, e uma fome que a deixava tonta. Desceu as escadas num salto, seu coração aos pulos, o frio batendo contra seus peitos despidos. A geladeira - branca, grande, com lembretes grudados - queijo, leite, um grande pote de sorvete no congelador, alguns nacos de frango gelado e arroz frio. Pão e doce misturados em algo que ela nunca provara antes e cujo gosto mal sentiu. Sentia-se tola, em sua patética revolta, tentando reconquistar a liberdade perdida e a vida arrancada. Apanhou um pacote de bolachas pela metade e comeu quase inteiro, o leite ajudando-o a descer. Agarrou duas maças e uma banana solitária. Um pequeno aviso do seu racional e ela abandonara o alimento. Vomitou a sua alma naquela manhã, doce porém um tanto amarga.
Avalia os estragos com frieza, encobrindo as provas de seu crime. Quando ele desce, Nicolle estava preparando panquecas e há geléia, suco e café recém preparado sobre a madeira. Ela o comprimento com um sorriso. Ele sorri também, de alegria e surpresa. Por dentro, seu corpo estava apodrecendo. Nicolle estava morrendo. Era apenas uma mascara vazia, capaz ainda, de sentir dor, sua garganta sangrava, vinha-lhe o gosto de sangue à boca, seu organismo corroia as paredes de seu estômago com seu suco gástrico. Uma leve sonolência surgiu das palavras miseravelmente equivocavas e convictas:
– Você tem vomitado, Nicolle?
Nicolle, permanece em silêncio. Apenas lança a ele seu mais charmoso sorriso, e o observa corar, divertido, por um segundo.
Ele a olha e vê um sorriso. Todos vêem.
– Ah, Cassio... é claro que não. - ela não fora convincente.
Seu sorriso se intensifica e ele retribui, timidamente.
Quando saíram de Cassio, ele a levara para a casa, a chuva bateu no vidro do carro, e enquanto olhava pela janela do carro uma lágrima correu pela sua face. Talvez ela não fosse tão forte quanto julgava ser, e isso corroía sua alma. Ela só queria chegar em casa, se trancar no quarto e afogar-se em sua tristeza. Quando será que isso tudo ia terminar?
– Nunca, acho... - pensou, enquanto outra lágrima caia.
IV
– Nicolle, você é uma suícida em câmera lenta! - gritou Davi.
Davi, havia pego Nicolle vomitando no ginásio do colégio, após ter tido uma maldita compulsão.
– Não lhe devo explicações da minha vida, você não é nada pra mim, nunca foi! Aliás, eu nunca te amei de verdade, você é egocentrico, só pensa em você. Você nunca se preucupou comigo, se gostasse tanto de mim não me abandonaria às migalhas. - Nicolle não conseguira controlar suas lágrimas.
Nicolle, pela primeira vez sentira ódio de Davi. Parecia que todo o amor por ele havia sido apagado.
– Eu dúvido que nunca me amou, eu dúvido que ainda não me ama. Você se rastejava por mim, o que aconteceu? Arrumou algum namoradinho que te aguente por aí? Vai, me diz que não me ama mais.
– Eu não te amo mais, faço das suas palavras as minhas... eu deixei de te amar pois você não me emocionava mais. Pronto, não era isso que queria ouvir? Otário.
Nicolle estava orgulhosa de si mesma.
Mais parece que a melancolia insistia em reaparecer. Quando mais ela tentava se levantar, mais ela caia, a abstinência atacara outra vez. As drogas. Como é que surgem? Elas surgem de pessoas amadas. Perfeccionistas e inteligentes. Quem te ama, te droga. Amar é droga. Digestão é droga. Odiar é remédio. Viciar é a saída reluzente. Doia pensar que ela havia se tornado detestável e vazia. Vazia de sentimentos. E isso não inclui nada ilícito - estava limpa. Sempre esteve. Mais ela necessitava, era como se fosse seu oxigênio e ela precisava de tal para viver. Antes de conhecer Cassio, sua vida era tão vazia. Mais ela ainda precisava de drogas, por mais que pensasse que aquilo o machucaria, ele não precisava ficar sabendo. Os dias eram vazios e compridos, e então ela se afogava em muitos goles de café e alguns cigarros, quando sorveu o último gole do último café do dia, à essa altura da vida, já achava que nada a assustava ou chocava. Odiava Davi, amava Cassio. E, aturdida com esses pensamentos, percebeu que talvez precisasse de coisas novas, rotina não amortecia as dores. E ali ficou, pensando, sozinha no meio do apartamento, sentada com as pernas abertas e o cotovelo direito em cima da coxa direita com um cigarro entre os dedos, queimando sem parar. Os olhos fixos no cigarro. Pensou:
– A vida não para!
Saiu de casa. Botecos, baladas, caras, cocaína.
– É sempre igual e vazio. - pensava ela em seu inferno particular.
Solidão cômoda. Sempre sozinha, firme em suas decisões, Cassio não dava sinal de vida, ela não iria ligar, fazendo o que queria. Sem rédeas, é verdade. Era um cavalo indomável, mas só porque essa foi a única oportunidade que a vida lhe deu. Mentira. A vida dá muitas oportunidades. Cada segundo é uma oportunidade. Nesse dia, saiu de casa às 5 da manhã e foi até a favela comprar cocaína. Fácil. Andou até ali perto, não sentiu medo, e logo viu um garoto sentado no chão, com as costas na parede, meio que dormindo, meio que acordado e falou:
– Ô moleque!
– Oi, oi. - falou o moleque que era negro, mas de tão assustado, ficou branco.
– Tem cocaína? - o moleque aquiesceu com a cabeça.
Comprou e voltou pra casa. Ainda não sentia nada. Ainda sentia vazio. Esticou duas carreiras em cima da mesa de mármore e mandou uma, profundamente. Ali, sozinha, meio emotiva. Esbugalhou os olhos e ficou fitando a segunda carreira. Se levantou e foi até a cozinha fungando, pois o nariz escorria. Encheu um copo de Coca Cola zero calorias, adicionou gelo e deu dois goles rápidos. Voltou pra sala. Mandou a segunda carreira. A manhã era tão manhã. Despejou toda a Coca Cola na pia da cozinha, deu vontade. Bizarro, pensava, é que mesmo quando o dia está vazio, ele é cheio de pequenas cenas e situações que ficam na cabeça. Péssimo dia para Nicolle, sim. Ela chega em casa e se lembra dos olhos da mulher da padaria que à vendeu cigarro. Péssimo dia para Nicolle, sim. É verdade, mas foi um olhar que à fez estremecer. Fúria, dó, nojo, ela não sabia. E parou de pensar pra acender um cigarro. Pensar exigia demais. O dia passou, Cassio não ligou, então resolveu ir dormir. Não tinha sono, mas queria dormir pra esquecer que vivia, não que viver fosse ruim, pois agora ela vivia apenas pra uma pessoa, Cassio. Mas dormir era uma opção; era escolher não-viver por algumas horas. Deitou. Colocou as mãos juntas sobre o peito e respirou fundo, pensou em tudo junto: sexo, cocaína, Cassio, medo, vida, pessoas, cinema italiano, farol, benflogin, cigarro. Só pensou, porque não fazia sentido. Não queria nada, só ele conseguira tirá-la da solidão, só ele a preenchera por completo, ele já era parte dela. E era horrivelmente maravilhoso se sentir sozinha. Dormiu, devagar, serena. A vida não parava.
Nicolle, acorda com a campainha. Não haviam a interfonado porque? Seria alguma emergência? Ela veste somente o roupão e corre para atender a porta. Abriu a porta, não havia ninguém, por um instante ela achara que eram as crianças da vizinha que adoravam fazer essas brincadeiras tolas para irrita-lá. Ela fechou a porta, quando viu um papel, pequeno, porém com uma frase. Estava dobrado ao meio e a letra lhe parecia familiar, no bilhete dizia:
" O amor é a desculpa para a embriaguez acentuada, pra coisa toda ter sentido. Pra sua negação ter sentido. Pro vômito, pras drogas e pra inanição. A necessidade psicológica inunda sua mente em martírios mentais obsessivos. Ecoam substâncias incoerentes."
Davi.
Trancafiada em um quarto escuro, ainda assim se sentia mais segura. Ela sabia que longe de Davi, ela iria viver mais, muito além do que havia programado. Ele só havia a feito sofrer, e não era agora que ela voltaria para ele, ele não estava ileso de culpa, muito pelo contrário ele era o maior causador de tudo o que havia acontecido de ruim com Nicolle. Ele morreria sem o perdão dela, ou ele não sabe que o nome de Nicolle é dor? Nicolle, estava apaixonada, mais ainda machucava pessoas.
V
Ela queria manter cada corte em carne viva, ela estava mudando. Ela realmente queria mudar. Dorme, alma aleijada, enamora-te do ceifador inevitável, beija tuas mãos geladas.
Rezas pela supremacia de teu golpe fatal, esgar da lamina diabólica. Abraçai a sombra, faz de teu corpo tua mortalha. Persegues a morte como tua única luz salvadora. Transforme sua carne no punhal que te decepa, morreis virgem, herói imaculado, manchado apenas de teu próprio sangue derramado. Escrever, para Nicolle era como chegar ao frenesi total com suas palavras lindas e sábias.
– Apenas você... Leia-me com seus lábios, escreva tua resposta com suas mãos. Afunde-se em minha carne, Cassio eu preciso de você como preciso do oxigênio. Aqui estou me afogando. Ninguém ira me salvar. O navio está indo a pique for good dessa vez. Sou mal agradecida não sou? Mas sufoco-me Cassio. O ar aqui é infecto. Corri tanto, meu amor. Se eu morrer, não volto mais. Deixe-me ficar? - ela lia e relia as coisas que escrevera em seu diário.
Cassio, havia sumido. Passara uma semana, ele não havia ligado, não havia procurado Nicolle. O mais hipócrita dos fantasmas. Pra ela, já havia se acostumado com a ausência de carinho em sua vida, ela nem sentia mais dor. Faziam cinco dias que ela não comia, ela estava mais magra como nunca esteve antes. Ela só se lembrava de como ele era lindo deitado ao seu lado, ele estava deitado em sua cama e ela respirava o seu medo. Seus pulsos marcados pela corda, sua dor transcendendo pelos seus olhos cheios de lágrimas. E ela apenas observava nos bastidores. Ela se lembrava dos seus olhos claros cansados, do seu evidente pavor, do seu suplicar, seus ofegos. Seu nome, sua respiração ofegante em seu pescoço, Cassio. Lembrava-se da textura da sua pele, e do gosto que ela tinha quando havia à tocado com seus lábios sedentos pelo líquido que circulava ainda quente por dentro de suas veias.
Ela deitou-se na cama, e morreu durante doze horas, mergulhada em seu sono perturbado envolta às cobertas caras e roupas sujas. Ela nunca entenderia os seus erros, então nunca poderia concertá-los. Não que ela procurasse fazê-lo, é claro.
O telefone tocou, era do hospital. Cassio havia tentado se suicidar, ele mantinha muito segredos trancados em sua mente, muitas coisas que Nicolle nem imaginava. Pra ela, ele era o homem idealizado de seus sonhos, ele era aquele tal principe do cavalo branco, ou até mesmo o seu amor pra vida toda. Nicolle chegara no hospital, em prantos, não sabia o que estava acontecendo, lhe disseram que ele havia perdido muito sangue e não sabiam se ele ia se ele iria resistir.
Ele viveu, nasceu outra vez. Mais Nicolle, sabia que havia algo errado com ele. Ele não era o mesmo, não era aquele homem que ela havia conhecido dentro daquela sorveteria.
– Você está bem Cassio?
– Eu pareço estar bem Nicolle? Olha pra mim... - uma lágrima escorreu de seu olho.
– Porquê você fez isso com sua vida? Nós tinhamos tudo para ser felizes, eu havia mudado. Eu não iria te machucar, você era a única pessoa que eu gostava realmente, que eu queria bem, agora você mudou, não era esse Cassio que eu amava à dois meses atrás.
– Eu estava lá quando você entrou pela janela em uma noite fria, vestida como uma prostituta, degustando de seu glamour decadente e eu me lembro de fechá-la para você. Mas agora o portador da lâmina era eu. E eu não via uma garota problemática, via uma garota inocente que se envolveu com problemas. Você só estava no lugar errado e na hora errada. Você não tinha razões. Mas isso tudo, é claro, é uma grande mentira. Você não deveria ter me encontrado, você deveria viver sem mim. Eu não sou uma boa pessoa, eu tenho segredos, eu sou um louco, você não iria querer amar alguém assim... - ele dizia como se Nicolle nunca houvesse amado ele.
– Você sumiu, depois de tudo que nós passamos juntos, você sumiu... você morreu. Agora eu durmo na esperança de que algum dia esse eufemismo acabe, e acordo com uma ligação de um hospital dizendo que você tentou se suicidar? Cassio, olha pra mim... - coloca sua boca rente a dele - eu te amo, por mais que você tenha errado, eu também erro. Eu sempre errei na minha vida, mais finalmente eu acertei pelo menos uma vez! E essa vez foi você, você foi a minha luz. Eu não acreditava em mais nada, pra mim tudo era simplesmente nada.
– Você parou de comer também? Você acha que consegue fugir dos problemas assim Nicolle? Você acha que vomitando, ate machucar sua garganta resolve algo? Você acha que ser magra vai te deixar mais feliz? Boa Sorte, você está pior do que eu. Você a cada dia que passa, se mata um pouco mais.
– Eu parei de comer então todos tiveram que fazer o que eu dizia. Isso me deu poder. Eu acho que foi a época mais feliz da minha vida. Mas eu tive que parar antes que eu morresse porque... senão não seria divertido. Meus pais me expulsaram de casa, eu passei a viver sózinha desde os meus dezesseis anos, vou completar dezoito. Eu nunca dependi de ninguém, eu sempre sai por aí, eu sempre cai bêbada nas escadas e nunca ninguém me ajudou. Eu sempre tive overdoses sózinha em meu apartamento, e nunca, nunca ninguém ao menos me levou pro hospital. Quando eu acho que encontrei um amor, é sempre assim Cassio. Depois de um tempo, o que é dor se tranforma em nada, você fica vazia denovo.
– Me desculpe, fala...- foi interrompido.
– Não, eu não desculpo, quem está me machucando agora é você . Falar o quê? Que eu te amava feito uma louca? Que o dia que você me beijou as pedras do chão estavam brilhando como estrelas? Isto! Comparação ridícula: os paralelepípedos eram estrelas azuis, eu olhava pra você, meu amor..você era o meu amor! E eu...olhava para você e o mar atrás do teu cabelo ficou verde-escuro e teus olhos, é o seguinte: ficou tudo sólido de repente...a paisagem em três partes, eu me lembro exatamente, tinha atrás de você o mar, o mar ficou vivo, verde-escuro, parecia que ia entornar na praia, vinha uma luz rosa de um neon da sorveteria onde nos conhecemos que já estava aceso, você pôs a mão nos meus olhos, tapou, assim, e me deu um outro beijo de leve, leve...e quando você tirou a mão, eu abri os olhos e o mundo tinha mudado, estava tudo diferente, a noite tinha caído, parecia uns desenhos, uns riscos luminosos no ar, os postes acesos, ventava nas palmeiras, e depois a luz roxa que entra pela janela do motel. Adeus, morra sózinho.
VI
– Segredos doem e é só uma questão de tempo para todos descobrirem! - repetia Nicolle para si mesma.
Sabe o que é pior do que ter o coração partido? Não se lembrar de como você se sentia antes. É, Nicolle realmente não nascera para viver e muito menos para ser feliz! Parecia que o mundo conspirava contra ela. Parecia uma peça teatral dos amores mal resolvidos. Ela voltou a vomitar, ela voltou a emagrecer, ela voltou a se cortar, ela voltou a ser vazia. Sentia como se estivesse tudo errado demais. Mas sempre haveria um modo de deixar ainda mais errado. Ela nunca teve uma vida, e é completamente estranho falar isso de uma garota de dezessete anos.
Ela não chorou. Ela não sentiu nada de extremamente forte. O tédio já estava tão intrínseco nela que o que ela sentiu foi apenas uma pequena queda. Sua zona de conforto acabara. O tédio acabara. Agora teria que acontecer algo que não fosse a escola, as inumeras festas, as drogas, as bebidas, as músicas no último volume, as ofensas berradas, ou os livros. E ela sentiu medo. Ela não podia ficar mais nem um minuto naqueles lugares - apartamento, escola, ginásio - escuros demais, frio demais, cheio demais. As pessoas mortas de olhares mortos, gastando dinheiro enquanto não tinham mais vida, sorvendo o álcool pela boca e se esquecendo da comida, aspirando a cocaína e se esquecendo do ar. Sua vida havia se transformado naquilo novamente. Ela sempre achou os seres humanos demasiado idiotas, com seus vícios inúteis e sentimentos fúteis, e agora ela era só mais uma pedra, uma deles; drogada, bêbada, e que não voltaria para casa se uma alma bondosa que só queria lhe fazer mal não a levasse para casa.
Uma garota boa, um homem mal. Carinho, carinho, carinho. E então era dor e dor e dor e infinitamente dor. Dor física. A mesma lágrima, todas as tardes, e o suspiro de prazer de uma alma partida. Dor, dor, dor. Corrompida. Ela estava se prostituindo para conseguir viver, largara a escola, largara os livros. Agora ela era realmente a dor.
– Você está gostando?
Começava a repetir isso em sua cabeça e depois de algum tempo era automático. Mentia. Ela sempre mentia.
– Você está gostando?
Ele está de olhos fechados e sua mão caminha livremente - quase levianamente - por seu corpo. Fragilidade. Ela ama a fragilidade, ela amava clientes vulneráveis. Amava o modo como eles pareciam ronronar e estremecer sob seus dedos - e dizia para si mesma que é por prazer, mas a expressão em seu rosto faz com que seus pensamentos pareçam idiotas demais. Não há como fingir isso enquanto seu rosto é apenas um reflexo do que era. Do que era antes.
– Você está gostando?
Mãos tão pequenas, imaculadas, mãos que os tocavam e eles fechavam os olhos e quando abriam viam nos seus uma única lágrima. Ela nunca dizia nada. Ela não fazia mais nada além do que eles queriam que ela fizesse. Essa lágrima é tudo o que ela deixava transparecer do que sentia. Muitas das vezes, os homens pagavam pelo programa, mais não chegavam a praticar o ato, pois viam que além de tudo ela era frágil, vulnerável, mesmo não aparentando ser.
– Você está gostando?
Nicolle estava morrendo de fome, ela não comia mais. Vivia à base de alcoól e cocaína. Ela tinha saudades de quando era uma garota normal.
Seus olhos estavam agitados. O seu corpo exausto se rescostou na janela, sintia sua respiração pesada, apoiou suas mãos na parede, se ela respirasse apenas um pouco mais forte, seu pulmão enfraqueceria e ela morreria. A degradação havia começado. Não existiam mais mentiras nas lágrimas derramadas, por isso existia apenas um alivio enquanto elas caiam pelo chão.
Suas mãos, seus olhos, sua respiração. Tudo entrando em colapso. Tudo iria virar pó.
As fotos das revistas estavam grudadas na parede, as modelos estavam a encarando, o odio e o amor gritavam juntos. Estava tudo desgastado, seu corpo apodrecera durante dezessete anos. No lugar em que estava não podia ouvir o som violento do seu corpo batendo no chão. Chegou a hora. O som distorcido não virá aqui, ele queimará junto com suas memórias felizes. Olhe seu rosto, essa face sem expressão, a menina sem rosto da pele pálida. Um sorriso congelado, ela se transformou em uma boneca vazia. Colocou duas aspirinas na boca. Fechou os olhos cansados, o chão se perdeu, ela flutuava e caiu no chão. Levantou os olhos para o teto, não podia se mexer, as aspirinas estavam acelerando seus batimentos cardíacos. Ela não tinha mais nada, vivia em agonia e sussurrava seus gritos enquanto seu corpo se desfazia. Ninguem iria ouvir seus sonhos mais sombrios. Ninguem precisava saber das suas trevas. Ela bastava, ela queria se bastar. Talvez se chorasse, elas parariam de à encarar assim. Ela tremia em repouso, faltava ar, mas tudo iria melhorar no dia seguinte, mais não houve dia seguinte. Apenas um dia de cada vez. Ela disse suas útimas palavras:
– Por mais que tudo mude, estaremos eternamente juntos...
Ela disse, por entre os lábios rachados. Deu um sorriso, talvez o mais bonito de sua vida, fechou os olhos e se foi.
VII
" Não existe bondade na humanidade. Eu me lembro da lâmina, mas disso você também deve se lembrar. Ela foi encontrada no seu banheiro, depois daquele episódio tristonho envolvendo sangue-lâminas-banheira-ambulâncias. Seus pais ficaram aflitos, mas eu sabia que você não iria até o fim. Você tinha bondade nos olhos e pior: Você amava. Você amava seus pais, por isso não enfiou a lâmina mais fundo. Amava sua irmãzinha, amava a garota da casa ao lado e amava o Davi. Você tramou tudo, porquê não me contaram? Eu sabia que você amava, a todos eles. E o seu pior erro era esse.
Eu me lembro de quando você voltou do hospital. Estava cansado. E eu me lembro das suas roupas largas. Eu sempre me lembraria do dia seguinte - ah sim, ele sempre vem - em que você cortou todas elas e jogou pela janela. Os seus pais acreditavam na sua recuperação, mas eu não. Você pegou a lâmina mais uma vez, e a usou mais uma vez. Eles tentaram a esconder de você, mas suas mãos ainda alcançavam facas, tesouras, giletes. Arrancou seu sangue inocente tantas vezes que no final acabou não sentindo quando isso realmente aconteceu. Você não o apreciava, o desperdiçava apenas. Deixava-o escorrer ralo abaixo numa mistura de água e shampoo de marca, e o estancava com ataduras apertadas que o faziam gemer durante toda a noite.
Não existe amor na humanidade. Só existe uma carência contida, um sentimento de querer o bem. Você quer retribuir a todos eles o carinho que lhes deram, mas eles nunca lhe deram carinho nenhum. Estávamos todos machucados, mas todos sempre saem machucados no final. E então qual é a diferença entre tomar dois comprimidos uma noite e sete, na outra? Eles surtiram o mesmo efeito, e você notou isso. Até eu notei, e eu nem estava ali. Você entrou no banheiro três vezes, em uma hora. E então você caminhou até o box, abriu o chuveiro e deixou a água escorrer. Você não pegou sua lâmina. Caminhou até o armário de remédios, e quebrou um vidro. Você não tentou recolhe-los. Você voltou para sua cama, e em intervalos médios de vinte minutos refez sua rota. Você recolheu seus comprimidos, você limpou os seus rastros. Tomou um banho, deixou com que a água levasse suas tristezas. Não precisava esconder nada de ninguém, você nunca faria algo de errado o suficiente para que precisassem persegui-lo. Se morresse no dia seguinte iriam encontrar um número suficiente de pílulas estocadas em seu estômago para que precisassem vasculhar seu armário. E você voltou para cama, e no dia seguinte recebeu flores, cuidei de você Cassio. Você era o meu amor, eu te amava. Olhe o que você fez comigo? Você me matou, você que jurou um dia nunca me machucar. Você me matou!
Eu tinha um cigarro e de repente, você também tinha, você não fumava, pelo menos era o que eu achava. E eu sabia que você estava triste pelas cinzas que caiam da sua janela. E eu vi quando você guardou o seu diário sob a terceira tábua solta, atrás de uma pintura de flores. Ela se abriria ao terceiro toque., e eu desejei poder ler todas as coisas que você escrevia nele. Eu descobri o seu nome que na verdade não era Cassio, mais isso não importa... e estive na sua porta duas vezes. Você namorava com Davi, os dois homens que mais amei na vida. E conheci todos os seus namorados e namoradas que oscilaram entre novembro e março desse ano. Eles estavam no seu quarto, na sua janela, no seu jardim, na porta da sua casa. Estavam no playground da esquina, na farmácia do próximo quarteirão, na locadora na rua de cima e também estavam na pizzaria, a três quadras dali. Eles andavam nas ruas e te distribuíam socos, em vez de chocolates ou flores. E quando você chegou machucado eu lhe dei analgésicos, eu curei sua doença. Você nunca soube, e nunca me agradeceu. Eu lhe alimentei, mesmo quando você recusava a comida. E eu lhe salvei duas vezes, quando esta atitude lhe fez cair no meio da tarde. Eu achava que conhecia todos os seus segredos, cada único e doentio segredo. Eu queria estar ali, atravessar aquelas paredes creme e aquelas cortinas vermelho-sangue, tal como o seu deveria ser. Se eu não te conhecesse tão bem, provavelmente diria isso.
As estações mudaram e tudo continuou igual. As folhas caíram quando você cortou seu cabelo com a tesoura em um daqueles seus ataques, e com a neve, vieram as lágrimas. Na primavera, você desaposentou o carro, e no verão as lâminas. Em meados do próximo outono, seus pais lhe deram um novo espelho. Ele era grande e cobria metade da parede. Refletia seus medos e suas angústias, por isso você tentou despregá-lo duas vezes. O que adiantaria quebrar o espelho com sua cabeça? Mas mesmo assim você sempre tornava a frente dele, e apreciava as suas mudanças.
Eu estava ali quando você teve sua sexta overdose Cassio. E quando a empregada entrou, com um copo de algum líquido fermentado que você jogaria pela janela, e te encontrou sem pulso. Eu estava ali quando você voltou da clínica, com suas mentiras disfarçadas de promessas. Estava ali quando você olhou as estrelas, e as amou. Vi quando você chorou por elas, e as pegou para si. Eu lhe dei uma estrela uma vez, a mais brilhante, e lhe dei meu nome, Nicolle. Eu lhe dei o céu, o amanhecer e a madrugada, mas você nunca soube.
E quando nós finalmente nos conhecemos, eu portava a lâmina, e você era o homem indefeso. Você podia gritar, mas preferia ficar calado. Você tinha escolhas. E dentre todas, escolheu a dor. Você escolheu continuar comigo, mesmo sabendo que poderia lhe machucar. Você escolheu viver a se entregar para uma morte rápida e limpa. Você nunca teria coragem. E você não me conhecia, mas você me amou, mesmo amando ao Davi, eu sei que você me amou. Aquela nossa primeira noite, eu sei que fora especial. Amou minhas mãos sujas e o meu coração gelado. Amou, mesmo eu portando o objeto que atravessaria o seu peito e derramaria o seu sangue. Você me amou mesmo eu sendo o assassina fria e crua, eu te matava apenas com meu olhar. Você me amou mesmo antes de descobrir que eu lhe conhecia melhor que você mesmo, mesmo antes de saber que eu cuidava de você, e zelava pela sua vida, mesmo gostando de assistir a sua queda. Por que eu sabia que enquanto vivesse, você sempre precisaria de mim. E eu te amei, naquele momento e muito antes.
Nicolle."
Nicolle, morreu. Mas a dor, não.
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