domingo, 11 de março de 2012

Dois Irmãos - Milton Hatoum

Dois Irmãos - Milton Hatoum



Dois Irmãos, romance de Milton Hatoum, narra história de ódio familiar.

Escrito em estilo enxuto e ao mesmo tempo repleto de sutilezas, o romance narra a tumultuada relação de ódio entre dois irmãos gêmeos, numa família de origem libanesa que vive em Manaus.

O romance Dois Irmãos, publicado em 2000, rompeu um silêncio de 11 anos que Milton Hatoum vinha mantendo desde Relato de um Certo Oriente, sua estreia como romancista. O autor costuma dizer, em entrevistas, que “cada livro nos ensina a escrever”. Se sua afirmação for levada ao pé da letra, nenhum livro lhe ensinou tanto quanto Dois Irmãos. Nessa obra, Hatoum demonstra grande domínio da técnica da ficção, num estilo mais enxuto que o da primeira obra e, ao mesmo tempo, repleto de nuanças e sutilezas.

A trama gira em torno da tumultuada relação entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, em uma família de origem libanesa que vive em Manaus. O ambiente que forma o pano de fundo da história é o de imigrantes que se dedicam ao comércio, numa cidade que vê aprofundar-se sua decadência, após o período de grande efervescência econômica e cultural vivido no início do século XX.

A narrativa apresenta avanços e recuos no tempo, sem uma cronologia linear. Os problemas vão sendo revelados ao leitor aos poucos, conforme o narrador rememora fatos esclarecedores e os encadeia para solucionar (ou deixar em suspensão) os enigmas da história.

Uma breve introdução narra a morte de Zana, em situação de enorme angústia. Na cena descrita, o silêncio que responde negativamente à última pergunta da mulher (“Meus filhos já fizeram as pazes?”) coincide com o fim do dia.

O primeiro capítulo começa com a volta do jovem Yaqub de uma viagem forçada ao Líbano. Pode-se concluir que essa ação se passa em 1945, no fim da II Guerra Mundial, pois o porto do Rio de Janeiro está “apinhado de parentes de pracinhas e oficiais que regressavam da Itália”.

O motivo da viagem ao Líbano é esclarecido em mais um recuo cronológico: a tentativa de separar os gêmeos e evitar o conflito entre eles. As diferenças entre os personagens, que parecem vir do berço ou ter começado em sua mais remota infância, tornam-se cada vez mais acentuadas.

A primeira disputa séria entre os irmãos tem como pivô Lívia, uma garota pela qual os dois se apaixonam. Numa primeira ocasião (o baile dos jovens), a mãe ordena a Yaqub que leve a irmã Rânia para casa, o que favorece Omar. O troco não demora a chegar: numa sessão de cinematógrafo na casa dos vizinhos, uma pane no equipamento deixa a sala escura. Quando as luzes se acendem, os lábios de Lívia estão colados ao rosto de Yaqub. Omar se vinga quebrando uma garrafa e cortando, com ela, o rosto do irmão. A cicatriz em forma de meia-lua será uma marca do ódio perene entre ambos.

Os pais percebem que o incidente pode despertar uma série de vinganças entre os dois e, para evitar isso, mandam Yaqub a uma aldeia remota no Líbano. A estratégia resulta inútil, pois a única coisa que não muda em Yaqub, ao voltar para o Brasil, é o ódio que sente do irmão; o mesmo pode ser dito de Omar.

Yaqub chega da viagem e se aferra aos estudos, revelando-se um matemático excelente. O irmão, que permanecera sob os cuidados da mãe, mostra-se irrequieto e indisciplinado.

Durante uma aula de matemática, o Caçula agride o professor Bolislau, o preferido de Yaqub, e é expulso do colégio dos padres. Vai para uma escola de reputação duvidosa – Liceu Rui Barbosa, o Águia de Haia, conhecido como “Galinheiro dos Vândalos”. Lá, conhece o professor Antenor Laval, admirador de poetas simbolistas franceses e defensor da liberdade.

Em contrapartida, o sucesso de Yaqub tem como prêmio uma viagem a São Paulo, a fim de que possa aprimorar os estudos. Seu professor de matemática, o padre Bolislau, ajuda-o a decidir-se pela partida, ao dizer: “Se ficares aqui, serás derrotado pela província e devorado pelo teu irmão”. Antes de seguir, Yaqub tem um encontro amoroso com Lívia.

Aos poucos, a identidade do narrador é revelada. Sua mãe, Domingas, trabalhadora prestativa e submissa, nada diz ao filho sobre quem seria seu pai.

De São Paulo, Yaqub envia cartas cada vez mais lacônicas. Forma-se em engenharia, prospera profissionalmente e casa-se. Enquanto isso, um Halim velho e nostálgico fala sobre o passado ao narrador. Conta como foi o nascimento dos filhos e a abertura de sua loja. Afirma, também, que a vinda dos filhos o incomodou, pois sentia que eles lhe roubavam a atenção da mulher, principalmente o Caçula.

Omar torna-se boêmio, entrega-se a festas e a bebedeiras, terminando sempre suas noitadas estirado numa rede da casa, onde permanece grande parte do dia. Na noite em que traz uma mulher para casa, isso ultrapassa os limites até mesmo de seu permissivo pai. Halim levanta-se e expulsa a desconhecida, que dormia na sala. Depois, arrasta o filho pelo cabelo, dá-lhe uma bofetada, prende-o ao cofre e parte por dois dias.

Quando Omar leva formalmente outra mulher, Dália, para casa, Zana antevê nela uma potencial concorrente, por isso a expulsa. O Caçula parte atrás de Dália, que descobrem ser uma das Mulheres Prateadas, grupo de dançarinas amazonenses que se apresentava em uma casa noturna.

Após o episódio da mulher prateada, Zana decide enviar Omar a São Paulo. Yaqub nega-se a abrigar o irmão, mas se propõe a alugar para ele um quarto numa pensão e matriculá-lo num colégio particular. O Caçula parte para São Paulo e, durante algum tempo, porta-se de maneira exemplar.

De repente, chega a notícia de seu desaparecimento. Algum tempo depois, descobre-se que ele se envolvera com a empregada de Yaqub para ter acesso à casa do irmão. Ao chegar lá, descobrira que a mulher de Yaqub não era outra senão Lívia, alvo das disputas infantis dos gêmeos. Tomado pela raiva, Omar cobrira as fotos de Yaqub e de sua mulher com desenhos obscenos. Roubara também 820 dólares do irmão, mais o seu passaporte, e viajara para os Estados Unidos.

Numa visita de Yaqub à família, em Manaus, o narrador observa sua mãe e o visitante de mãos dadas e desconfia ter descoberto a identidade de seu pai. De volta a São Paulo, o gêmeo mais velho prospera cada vez mais.

Omar retorna a Manaus, onde se envolve em atividades de contrabando e com uma mulata conhecida como Pau-Mulato. Depois foge de casa por longo tempo.

Halim decide procurar o Caçula, mas a busca, que dura meses, não surte resultado. É Zana quem dá o passo decisivo para encontrar o filho: procura um velho peixeiro manco, o Perna-de-Sapo, que conhecia a floresta como ninguém. Em pouco tempo, o homem descobre o paradeiro de Omar. Zana vai atrás dele e, após uma discussão, o traz para casa.

O narrador revela sua paixão por Rânia, que, no entanto, só irá conceder a ele uma única noite de amor. Halim envelhece, e a presença definitiva do Caçula o deixa pouco à vontade em casa. Zana pede a Nael, o narrador, que acompanhe o filho em suas noitadas.

Outra faceta de Omar é narrada no episódio de prisão e morte do professor Antenor Laval. Em abril de 1964, logo após o golpe militar, Laval é espancado por policiais em praça pública e preso. Dois dias depois, sabe-se que está morto.

Omar, abalado com o destino do mestre, fecha-se em luto e deixa temporariamente as noitadas. Halim se entrega cada vez mais ao passado e sai de casa frequentemente, para longas caminhadas pela cidade, sempre seguido por Nael. Até que, na véspera do Natal de 1968, só volta de madrugada, depois que todos já dormiam. De manhã, os familiares o encontram: sentado sobre o sofá, não respira mais. Omar dirige, então, grandes ofensas em direção ao corpo do pai.

Vizinhos chegam a tempo de impedir o filho de atacar o cadáver. Yaqub envia para o enterro uma coroa de flores e um epitáfio: “Saudades do meu pai, que mesmo à distância sempre esteve presente”. Zana, pela primeira vez, trata Omar com dureza e o repreende severamente.

Omar passa a trazer para casa um indiano chamado Rochiram, que pretende construir um hotel em Manaus. Zana vê aí a possibilidade de reconciliar os dois irmãos. O Caçula prevê as intenções da mãe e tenta esconder inutilmente o indiano. Por carta, Zana chama Yaqub, que, após algum tempo, aparece secretamente em Manaus e se hospeda num hotel isolado. Está associado a Rochiram. Numa manhã, Yaqub surge na casa e deita-se na rede, chamando Domingas para sentar-se a seu lado. Nesse instante, Omar irrompe na varanda e agride brutalmente o irmão indefeso. Rasga também seus projetos para a construção do hotel. Os planos de Zana vão por água abaixo: Yaqub tentara trair o irmão, que descobrira tudo e o teria matado se não fosse a interferência de Nael e dos vizinhos.

Para piorar a situação, o fracasso do projeto resulta em gigantesca dívida com o empresário indiano. Pouco tempo após o conflito, Domingas fica doente e morre. Antes, revelara ao filho que, no passado, fora estuprada por Omar.

Rânia prepara um bangalô para levar a mãe, que resiste a abandonar o velho lar. Um dia, Rochiram aparece e pede a casa como forma de acerto da dívida. A sugestão viera de Yaqub. Omar torna-se um foragido, porque a agressão fora denunciada pelo irmão à polícia. Nesse tempo, ocorre a morte de Zana. Uma pequena parte da casa, nos fundos, torna-se posse de Nael. “Tua herança”, afirma-lhe Rânia.

Numa tarde, Omar aparece diante de Rânia. A irmã não tem tempo de falar com ele, já que policiais estavam à espreita e o capturam, depois de agredi-lo.
O narrador cita rapidamente a morte de Yaqub. Omar sai da cadeia pouco antes de cumprir sua pena. Na última cena do romance, chove torrencialmente e o Caçula aparece diante do narrador. Olha fixamente para Nael, parece estar a um passo de pedir perdão, mas recua e parte lentamente. 

Os personagens:

NAEL – narrador da história, seu nome é revelado apenas na metade do livro. É filho da índia Domingas, empregada da casa, com um dos gêmeos. De sua posição de agregado, ao mesmo tempo secundária e privilegiada, transmite os acontecimentos ao leitor.
OMAR – um dos gêmeos. Por ter sido o segundo a nascer, é chamado pelo narrador de Caçula. Sua relação muito estreita com a mãe sugere o incesto. Indisciplinado e intempestivo, é capaz de ações inesperadas e corajosas.

YAQUB – o irmão gêmeo de Omar. Introvertido e dedicado aos estudos, revela-se na juventude um grande conquistador. Parece sofrer com a preferência da mãe pelo irmão.
ZANA – mãe dos gêmeos e de Rânia. Mulher bela e de temperamento forte, é apaixonada por Omar.

HALIM – marido de Zana, apreciador dos prazeres da vida e nostálgico, mas também forte e corajoso. O tempo parece não influenciar a intensidade do amor que sente pela mulher.

RÂNIA – irmã mais nova dos gêmeos, decide não se casar e dedicar-se inteiramente ao comércio.

DOMINGAS – índia que Halim e Zana haviam tirado de um orfanato ainda criança, é empregada da família e mãe de Nael. 



Milton Hatoum volta ao romance com um drama familiar em cujo centro estão dois filhos de imigrantes libaneses: os gêmeos Yaqub e Omar. O enredo do romance trata, basicamente, do (não) relacionamento entre os irmãos.

O ponto de onde é feita a narração é uma posição bastante privilegiada e natural para o desenvolvimento da história. O narrador é um personagem, coisa que não sabemos de imediato, mas no desenvolvimento do livro. O narrador é, na verdade, o filho bastardo de um dos gêmeos com a empregada que mora no fundo da casa dos pais deles. Essa posição próxima, porém não íntima, e o interesse do narrador em descobrir quem é seu pai, o torna o narrador ideal para este romance.

Narrado em primeira pessoa, a história se passa em Manaus de 1910 a 1960. Os dois irmãos nunca se entendem, até que Yaqub é obrigado a ir para o Líbano. Quando volta, cinco anos depois, sente-se deslocado dentro de sua própria família, enquanto as intrigas continuam. Aliás, o sentimento de deslocamento é o que sustenta a narrativa, e traz o drama familiar para a esfera do universal.

Segundo Hatoum, o imigrante é um sujeito dividido, sofre de uma espécie de dualidade do lar, da pátria. Nesse sentido, os dois irmãos funcionam como uma metáfora dessa dualidade. Um se identificando mais com o Brasil e o outro se sentindo estrangeiro, diferente, muitas vezes sendo referido apenas como “o outro” pelo Narrador, que, por sua vez, também é um deslocado, filho da empregada com um dos gêmeos, mas sem saber qual deles.

Entre esse duelo fraternal, Hatoum ainda constrói a dificuldade de um homem apaixonado pela esposa, que perde a atenção dela para os filhos; um filho bastardo que tenta descobrir qual dos gêmeos é seu pai; a história do imigrante de origem árabe no Brasil e a expansão comercial da região norte; e o retrato de uma sociedade pequeno burguesa, que se mostra tão previsível no norte do Brasil, quanto na França, dos escritores de grande influência para o autor manauara, Flaubert e Balzac (juntamente ao norte-americano William Faulkner).

Esses temas vão se dissolvendo com o passar do tempo da história. Mas não perdendo em importância ou se resolvendo e sim, se entranhando cada vez mais à narrativa.

Uma tensão leve é a convidada cativa do texto de Hatoum, que se faz presente em todo o livro. As páginas a serem lidas vão rareando nas mãos e as soluções são, no máximo, indicadas.

Aliando essa tensão à fluência textual (no melhor estilo de seus autores de influência), Hatoum nos conta uma história isenta de lições moralizantes ou advertências.

O que nos toma ao final da leitura é um sentimento de incompletude e incerteza. Espaços em aberto. Muitas perguntas, muitas possibilidades, poucas certezas.

Esse espaço de incerteza é que fascina no momento da leitura e não frustra ao deixar perguntas. É a máquina narrativa de Hatoum, funcionando direitinho.



Enredo:

No início do século XX, Manaus, a capital da borracha, recebeu estrangeiros como o jovem Halim, aprendiz de mascate, e Zana, uma menina que chegou sob a asa do pai, o viúvo Galib, dono de um restaurante perto do porto. Halim e Zana vão gerar três filhos: Rânia, que não vai casar nunca, e os gêmeos Yaqub e Omar, permanentemente em conflito. O casarão que habitam é servido por Domingas, a empregada índia, e mais tarde também pelo filho de pai desconhecido que ela terá. Esse menino — o filho da empregada — será o narrador. Trinta anos depois dos acontecimentos, ele conta os dramas que testemunhou calado.

Omar é o beberrão boêmio, mimado, conquistador e revolucionário. Yaqub é o engenheiro que construiu sua vida independentemente de ajuda, magoado com a família, tímido, conservador e que se muda de Manaus (cenário da história) para São Paulo.

Essa diferença de personalidade faz parte do pacote ‘história de irmãos gêmeos’. Assim como a constante competição entre eles.

Dois irmãos é a história de como se faz e se desfaz a casa de Halim e Zana. Apaixonado pela mulher, depois do nascimento dos filhos Halim se condena à nostalgia dos tempos em que não era pai, em que não precisava disputar o amor de Zana, em que os dois tinham todo o tempo do mundo para deitar na rede do alpendre e se entregar aos prazeres sensuais. Pelo que nos conta o narrador, Halim estará sempre à espera da decisão mais acertada diante dos abismos familiares: a desmedida dedicação de Zana a Omar, seu filho preferido; o trauma de Yaqub, o filho que, adolescente, foi separado da família supostamente para amenizar os conflitos com Omar; a relação amorosa entre os gêmeos e a irmã, Rânia. De Domingas, com quem compartilhava o quartinho nos fundos do quintal, o narrador nos diz que esta é uma mulher que não fez escolhas. Aparentemente, não escolheu nem mesmo o pai de seu filho.

Milton Hatoum faz os dramas da casa estenderem-se à cidade e ao rio: Manaus e o Negro transformam-se em símbolos das ruínas e da passagem do tempo. E, pela voz de um narrador solitário, revive também os tempos sombrios em que as praças manauaras foram ocupadas por tanques e homens de verde. Esses tempos foram responsáveis pelo destino trágico de um grande personagem do livro: o professor Antenor Laval.

Trecho “Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo da casa. O almoço era servido às onze, comida simples, mas com sabor raro. Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava a horta, cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador. No Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrinxã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e servia-o com molho de gergelim. Entrava na sala do restaurante com a bandeja equilibrada na palma da mão esquerda; a outra mão enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de mesa em mesa e Zana oferecia guaraná, água gasosa, vinho. O pai conversava em português com os clientes do restaurante: mascateiros, comandantes de embarcação, regatões, trabalhadores do Manaus Harbour. Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças remotas e o mais recente: uma dor ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os caloteiros saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, fumavam, e as vozes prolongavam o ritual, adiando a sesta”.



Leitura do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum


Dois Irmãos: incesto, rejeição e rivalidade

Dois irmãos, romance de Milton Hatoum, tematiza o incesto, a rivalidade, a revolta, o ciúme e as tantas nuanças que desajustam a vida de uma família de imigrantes libaneses residente em Manaus. O seu diálogo com o presente e o passado fez-nos resgatar histórias bíblicas, histórias clássicas e contemporâneas para mostrar que seus temas são tão antigos, como atuais, eternos como a própria impossibilidade de harmonia terrena, o que também se evidencia em Relato de um Certo Oriente, obra também de Hatoum, dada à lume em 1990.

O enredo de Dois Irmãos, embora cíclico, dá-nos a exata noção de uma temporalidade cronológica. A narrativa é construída tendo como ponto de partida a vida de Halim, um mascate do Líbano, que se apaixona por Zana, filha de outro libanês, dono de um restaurante. Os gazéis do amigo Abbas são definitivos no processo da conquista e passam a funcionar como uma senha para os momentos de amor fogoso, que não eram raros, nem reservados: ´Vi Halim e Zana de pernas para o ar, entregues a lambidas e beijos danados, cenas que eu via quando tinha dez, onze anos e que me divertiam e me assustavam, porque Halim soltava urros e gaitadas, e ela, Zana, com aquela cara de santa no café da manhã, era uma diaba na cama, um vulcão erotizado até o dedo mindinho´ (p.90). Da união, nascem os gêmeos Yakub e Omar (o caçula, por ter saído da barriga por último) e Rânia. A história dessas vidas de papel é delineada por Nael, o filho da empregada-índia Domingas, órfã e ex-interna de um colégio de freiras. Com a morte de Halim, Zana, Domingas, Yakub e Nael, em busca da identidade paterna, contam o que viram e ouviram. Nael como agregado da casa e confidente de Halim.

Depois que os gêmeos nascem, Halim, que não queria ter filhos para poder desfrutar integralmente o amor da esposa, vê-se colocado de lado. Decide mandar os dois (filhos) para o Líbano, mas Zana impede que Omar vá, alegando a fragilidade da saúde dele; Yakub viaja com alguns amigos do pai, aos 13 anos (um ano antes da Segunda Guerra (p.15)). Passa cinco anos amargando a preterição da mãe, vivendo privações, até que a família manda buscá-lo. De volta à casa dos pais, não consegue perdoar a mãe pela escolha, nem se mostra capaz de conviver com o excesso de proteção dela para com o irmão. Acirra-se a rivalidade entre os dois, reacendendo a cicatriz feita por Omar no rosto de Yakub quando o pegou, ainda na infância, se beijando com Lívia, moça por quem também era apaixonado.

Zana, em seu amor desgovernado, sempre protegendo o caçula, não encontra nenhuma nora à sua altura, interrompe as paixões dele pela Mulher Prateada e pela Pau-Mulato, as única mulheres por quem ele realmente se interessou, alimentando cada vez mais a sua dependência emocional. Omar não se adapta a nenhum colégio, não se submete a nenhum emprego, não dá continuidade a nenhum projeto. Yakub, sentindo-se sempre preterido, vai embora para São Paulo, onde se forma engenheiro e se coloca profissionalmente; manda buscar Lívia e se casa com ela, sem que a família saiba. Rânia assume os negócios da família e, por ter não tido a aceitação de Zana para um pretendente seu, decide não querer mais ninguém. Alimenta uma relação entre afetuosa e sensual com os dois irmãos, aparentemente cópias perfeitas do seu parceiro ideal: ´Omar reaparecia, de carne e osso, sorrindo cinicamente para a irmã. Sorria, fazia-lhe cócegas nos quadris, nas nádegas, uma das mãos tateava-lhe o vão das pernas. Rânia suava, se eriçava e se afastava do irmão, chispando para o quarto (p.94) / ... / Como ela se tornava sensual na presença de um irmão! Com esse ou com o outro formava um par promissor... Rânia, não a mãe, ganhou os melhores presentes dele (Yakub)... Ainda chovia muito quando a vi subir as escadas, de mãos dadas com Yakub; entraram no quarto dela, alguém fechou a porta e nesse momento minha imaginação correu solta´ (p.117).

Vários fatos vão sendo encadeados. Em função dos problemas com Omar e do excesso de amor, Zana se descuida de Halim e faz crescerem os ciúmes dele. Domingas, a empregada que não teve escolhas na vida, cria o filho, neto dos patrões (filho de uma noite em que Omar abusa sexualmente dela), em um quartinho nos fundos da casa. Após a morte de Halim, Yakub volta a Manaus para fazer o projeto de um hotel; Omar se revolta, acusa-o de ter roubado sua idéia, agride-o fisicamente e acaba preso. Após sair da prisão, sua casa já foi vendida, sua mãe está morta e ele, envelhecido, desaparece sem rumo. Nael fica morando no mesmo quartinho, então independente da casa, herança a ele destinada por Yakub. Rânia compra uma casa e nela passa a viver sozinha após a morte da mãe. Como o tempo em que se passa a história termina nos anos 60, o narrador não deixa de inserir fatos que retratam a ditadura militar: as tropas do exército pelas ruas, a censura dos meios de comunicação e o assassinato, em janeiro de 1964, do professor de francês, o poeta Laval, cujo passado estava ligado ao Partido Comunista.

As atitudes pouco comuns numa relação familiar podem ser assim relacionadas: o amor excessivo de Zana por Omar a faz competir com suas pretensas noras: ´Dessa vez ela não quis disfarçar: encarou com um sorriso dócil e um olhar de desprezo a mulher que jamais seria a esposa de seu filho, a rival derrotada de antemão´ (p.99); a solidão de Rânia, que passa as noites trancadas em seu quarto, só permite que ela ´desabroche´ na presença dos irmãos: ´Depois do jantar entocava-se no quarto, onde a noite a esperava. Vá saber o que acontecia durante esse encontro misterioso. É provável que nem a noite percebesse seus gestos e pensamentos´ (p.96); os ciúmes de Halim, obsediado pelo sexo de Zana e impedido pelos problemas dos filhos, sobretudo do caçula, levam-no a culpar Omar pelo descaso da esposa e culminam na rejeição ao filho: ´Halim torcia para que uma dessa mulheres levasse o filho para bem longe de casa ... Mas ele intuía que Zana era mais forte, mais audaciosa, mais poderosa´( p.100); a ambição e a revolta de Yakub, que vence profissionalmente e se casa com a mulher que ama, o faz agir com frieza em relação ao irmão e, após a morte da mãe, realizar sua vingança. Rânia não o perdoa, tenta resgatar Omar, mas ele foge de todos.

Resta Nael, cuja paternidade é revelada pela mãe, antes de ela morrer: Omar, justamente aquele em quem nada admirava. A revelação faz com que ele não mais se interesse pelo pai. Não espera ajuda de Yakub, passa a trabalhar como professor no Colégio em que estudou e desiste de Rânia, a tia com quem viveu uma única noite de amor.

A história da família de Dois Irmãos intertextualiza, inicialmente, a de duas famílias bíblicas: a de Adão e Eva e a de Isaac e Rebeca, ambas extraídas do Gênesis, livro primeiro da Bíblia Sagrada. A primeira história de rivalidade entre irmãos se dá com Caim e Abel. Caim, o irmão mais velho, é lavrador; Abel é pastor de ovelhas. O despeito entre um e outro se dá quando Deus não aceita a oferta de Caim, que Lhe oferece produtos de sua lavoura e aceita a de Abel que lhe oferece uma ovelhinha. Não adianta dizer-lhe que o sacrifício deve ser feito com a morte de um animal. Caim não confiava em Deus como o irmão, e não acreditou em suas palavras: ´Assim como as folhas de figo não puderam cobrir o pecado de Adão e Eva, um sacrifício feito com plantas e legumes, sem sangue, também não podia perdoar os pecados´. Caim afastou-se de Deus e acabou cometendo o primeiro assassinato: tirou a vida do próprio irmão e tornou-se um amaldiçoado.

Já Esaú e Jacó, filhos de Isaac e Rebeca nascem a pedido do pai que clama a Deus a dádiva dos filhos, já que a esposa era estéril. Ainda na barriga, as duas crianças brigam e Rebeca tem a revelação, pela boca de Javé, de que eles representam a briga entre duas nações que se separam em suas entranhas. Um povo vencerá o outro, e o mais velho servirá ao mais novo (p.38). Esaú se tornou um caçador e Jacó preferia a tranqüilidade, vivendo sob tendas. Isaac se identificava com Esaú; Rebeca preferia Jacó. Jacó ambicionava ser o primogênito, direito que dava a Esaú, como o primeiro a sair da barriga da mãe, ter a autoridade patriarcal sobre os irmãos. Esaú, voltando do campo esgotado de fome, só recebe a comida de Jacó quando lhe concede o direito à primogenitura.

Zana parece a recriação de Rebeca que, ao privilegiar o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, faze-os inimigos irreconciliáveis. Quando Zana escolhe mandar Yakub para o Líbano e fica com Omar, só acentua a rivalidade entre os dois.

Já o romance Esaú e Jacó, Machado de Assis deixa clara, a partir do título, a intertextualidade com o Gênesis, quando já carrega no próprio título o nome dos gêmeos bíblicos. Pedro e Paulo, filhos tão desejados como os de Isaac e Rebeca, são também gêmeos, têm personalidades diferentes e desenvolvem, desde cedo, uma rivalidade sem explicação. Quando Natividade vai à ´Cabocla´ para saber sobre o destino deles, ela pergunta se eles brigaram em seu ventre. A mãe então lembra que não teve uma gestação sossegada, tinha movimentos extraordinários, repetidos, e dores, e insônias... (p.19). Segundo o narrador, o Conselheiro Aires, os dois irmãos representavam os dois lados da verdade. Paulo é extremamente impulsivo, age sempre de forma arrebatada; já Pedro é dissimulado e tem uma mente conservadora. Quando se tornam adultos, assumem posições políticas diferentes: Paulo é republicano e Pedro monarquista. A mãe e o pai sofrem com a constante competição, mas não conseguem aplacar o desejo que um tem de contrariar o outro. Os dois se apaixonam pela mesma mulher, uma moça retraída, simples, de nome Flora. Ela, não conseguindo encontrar em um só deles a completude do seu desejo, deixa entrever que um completaria o outro. Na impossibilidade de ter os dois, ela morre. Eles juram reconciliação junto ao túmulo dela, mas, ao elegerem-se deputados, continuam a brigar na tribuna. Novo juramento de paz é feito no leito de morte da mãe.

Zana igualmente sonhou morrer vendo os filhos, Yakub e Omar, reconciliados; sua última tentativa de uni-los no projeto do Hotel a ser construído em Manaus, resultou no estopim da intriga: Yakub exclui o irmão, e este, revoltado, o agride fisicamente. Após a morte da mãe, Yakub vinga-se das agressões que recebeu, mandando-o para a prisão. Na verdade, vinga-se de toda uma vida de preterição por parte da mãe. Halim sentia a possibilidade de um desfecho trágico e advertia a mulher: Dá um pouco de atenção ao outro filho. Faz anos que não vemos o Yakub (113). Zana morreu aflita, perguntado: meus filhos já fizeram as pazes? (p.12). Como Esaú e Jacó, os dois também nasceram perdidos (P.237). Como Caim e Abel, eles ficaram vulneráveis ao desejo de que um não vivesse; numa carta à mãe, Yakub escreve Oxalá seja resolvido com civilidade; se houver violência, será uma cena bíblica (p.228). Não há assassinato, é certo, mas há violência e plano sórdido de vingança. Há destruição de vidas pelo ódio.

A preferência por um filho em detrimento de outro também está presente na obra O ponto Cego, de Lya Luft, em que o Pai prefere a filha ao filho. Primeiramente ele amou a filha mais velha que morreu; após a perda, transferiu sua preferência para a outra filha, deixando definitivamente o Menino de lado: ´E ele amou a substituta com um estranho amor que excluía até mesmo minha mãe (p.29)... Eu sou o que deixaram sob o tapete, o que à noite se esgueira pelos corredores chorando´. (p.30). Mesmo tendo o amor compensador da mãe, ele finda abandonado, já que a mãe escolhe ir embora para viver a própria vida. Em A Sentinela, também de Luft, Elza, a mãe, não esconde a preferência pela filha Lilith, que acaba morrendo (suicídio?). Nem a morte da filha predileta a faz se aproximar de Nora, ao contrário, ela passa a quer vê-la longe, talvez a se perguntar: Por que ele não morreu em vez da outra? Nem o amor do pai a redime de sua condição de rejeitada: ´... entre o meu pai barulhento e vital e aquele homem distante, erguia-se a sombra onipotente e onipresente da filha morta´ (p.60). Ela vai estudar em um colégio interno, mesmo contra a própria vontade. A mãe assim se refere ao momento em que ela nasceu: ´nessa noite entrou em minha vida uma intrusa´ (p.27).

Ao que nos parece, seguindo os enredos, sejam quais forem as razões das escolhas, elas culminam sempre no desajuste de ambos os filhos: um se desagrega pela falta de amor; o outro, pelo excesso.

O incesto também tem sido um tema bastante visitado pela literatura, desde o amor do rei Édipo, herdeiro da maldição familiar do pai, e sua mãe Jocasta (Rei Édipo, de Sófocles). O passado de Laio, seu pai, que durante um período de exílio na corte de Pélops, apaixona-se por seu filho Crisipo e rapta-o, reitera a maldição do seu destino. É a ira de Hera, protetora dos amores legítimos, que dá origem à maldição dos Labdácidas (família de Laio), razão pela qual, a profecia não impede o destino de o filho e a mãe se amarem, o propicia.

Em Os Maias, de Eça de Queiroz, Carlos e Maria Eduarda, criados separados em função da separação dos pais, se encontram na fase adulta e se apaixonam; a distância do convívio os fez inocentes como Édipo e Jocasta. Há, entretanto, certa sordidez no comportamento do irmão quando, ao saber do parentesco, ainda mantém o conúbio com a irmã, sem avisá-la da descoberta. Em Lavoura Arcaica, o amor entre André e a irmã Ana é a causa de toda a tragédia familiar, como se a consciência do ato os amaldiçoasse; o pai não aceita a falência da educação dada, nem a transgressão aos padrões de comportamento: Ana é a serpente, por isso é ela que morre materialmente.

A Rejeição de pai pelo filho, como o faz Halim com Omar, ladrão do amor de Zana, como o faz o Pai de O ponto cego pelo filho frágil, é a continuação de uma história antiga. Laio e Jocasta, após ouvirem do Oráculo de Delfos que o filho que esperavam mataria o pai e se casaria com a própria mãe, decidiram contrariar o destino. Quando a criança nasceu, foi entregue a um escravo que, em vez de matá-la, furou seus calcanhares e abandonou-a perto do monte Citéron. A criança foi encontrada e criada por um casal de pastores, que, sem condições, entregam-no ao rei de Corinto. Como disse Prometeu, à hora do acontecido, foi essa atitude que traçou o rumo da profecia.

Mas Laio não é o iniciador dessa história de rejeição, é só olhar a mitologia e ver na atitude dos deuses a mesma estratégia: Urano impediu seus filhos de nascerem, Cronos os devorou, Zeus engoliu Métis, sua primeira esposa, grávida de Atena; em todos os casos, tentava-se fugir das previsões dos oráculos, como o fez Príamo, o rei de Tróia, com o filho Páris. Em todos os casos, a estratégia da rejeição não impediu o cumprimento das profecias. Também Halim abusou Omar, tentou enviá-lo para longe, mas não conseguiu diminuir o amor de Zana pelo filho; quando não era a presença dele que atrapalhava, era a ausência, ainda mais forte que a presença.

Voltando à paixão de Édipo por Jocasta, é interessante lembrar, que foi a relação deles que deu à psicanálise (Freud) matéria para o estudo de um complexo: a paixão do filho pela mãe, ou a busca pela mãe através da mulher com quem ele se relaciona: o Complexo de Édipo. No caso de André, personagem de Lavoura Arcaica, há indícios de que ele via em Ana a extensão do amor da mãe e a possibilidade, até inconsciente, de fazer jus à educação do pai, de manter a família unida num só núcleo. Também o personagem de Um copo de cólera, ao esperar a namorada ´deitado como um grande feto´, parece querer tê-la como num ritual de volta ao ventre materno. Sua agressividade é toda desejo de proteção. Zana, por sua vez, não permite que Omar solidifique nenhum relacionamento, porque nenhuma das mulheres com que ele se envolve seriamente - a Mulher Prateada e a Pau-Mulato - são dignas dele, ou seja, nenhuma possui as próprias características dela, a mãe.

O diálogo sempre é possível entre obras que abordam a família contemporânea, permeada com seus problemas e desajustes antigos, eu diria, eternos. A literatura da Antigüidade Clássica e a Bíblia Sagrada confirmam isso. Os temas não são novos, mas têm-se renovado na produção literária contemporânea.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado. Esaú e Jacó. São Paulo: Ática, 1992.

Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

____________. Relato de um certo oriente. 2ª. Ed. São Paulo: Companhia das

Letras, 2003

QUEIROZ, Eça. Os Maias. São Paulo; Martin Claret, 2005

LUFT, Lya. A Sentinela. 4.ed. São Paulo: Siciliano, 1999

_____________ O ponto Cego. 4.ed. São Paulo: ARX, 2002

NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3. ed. São Paulo, Companhia das Letras,2002

____________ Um copo de cólera. 5.ed. São Paulo, Companhia das Letras,2002
SOFÓCLES, Édipo Rei. São Paulo: Martin Claret, 2002

Nenhum comentário: